Antequam noveris, a laudando et vituperando abstine. Tutum silentium praemium.

Jornalista, escritor e dramaturgo, Walcyr Carrasco deitou falação na revista Época sobre A Hora Maldita da Herança. Para início de conversa, estranhei o fato de o pé-biográfico do paulista especificar “autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão”, além de a Wikipédia informar que o cavalheiro, nascido em Bernardino de Campos, é “um escritor, dramaturgo e autor de novelas de televisão”. Pensei que a profissão de dramaturgo incluísse as peças de teatro e as novelas de televisão, mas o dicionário Houaiss separa os dramaturgos dos novelistas.

Em sua crônica, Walcyr conta que foi ver uma casa para comprar no Pacaembu, bairro paulistano, e só pôde ver a metade pertencente a um dos herdeiros. A outra metade só poderia ser visitada depois de combinar com o outro herdeiro, irmão do primeiro.

Realmente, maldição nas heranças é um problema universal, sobretudo quando envolve muito dinheiro. Se a herança é pequena há problemas; quando é muito grande, os problemas são imensos. Tudo que envolva dinheiro, bens, partilhas – em casamentos ou sociedades – termina mal. Ainda quando um dos cônjuges ou dos sócios concorde com a divisão proposta pelo outro, ou por terceiros, as sociedades e os casamentos deixam sequelas.

Na roça há brigas muito divertidas. Fui vizinho de fazenda herdada por cinco filhos, já de certa idade, com suas mulheres e famílias. Casa colonial muito bonita, de dois andares, 450 hectares de terras de ótima qualidade, se bem que amorreadas, usina hidrelétrica própria de 10 KWA no rio que corta a propriedade.

No dicionário Houaiss, citado no primeiro parágrafo, kwa é ramo de línguas do grupo nigero-congolês faladas no litoral e interior africanos, na parte meridional do golfo de Guiné, da Libéria à Nigéria, mas o leitor entendeu o que foi escrito. Em uma fazenda, usina própria de 10 KWA é de bom tamanho. Já passei da idade de estudar certas siglas.

Digamos que os cinco herdeiros da fazenda fossem da família Silva, que ainda tenho amigos entre os brigões. Dividiram a casa por cinco, deixando os corredores e a imensa mesa de jantar como partes comuns. Construíram anexo baixo, comprido e pavoroso, coberto de laje, com seis cozinhas enfileiradas: uma “da fazenda” e mais cinco, lado a lado, com os respectivos armários de mantimentos para cada família.

Antiga máquina de café, prédio de época, funcionava como estábulo para as vacas das cinco famílias. Cada uma tirava um leitinho mandado para a cooperativa em latões separados. Pormenor curioso: nas partes comuns da casa, corredores e escadas, não havia luz apesar da hidrelétrica própria. Nenhum dos herdeiros era “bobo” de comprar lâmpadas para iluminar o trânsito de irmãos, cunhadas e sobrinhos.

Mas a sala de jantar tinha lâmpadas, presumo que rateadas entre as famílias, que usavam a mesa imensa para fazer suas refeições e proporcionavam às visitas espetáculo inesquecível, uma espécie de guerra de doces e salgados.

Explico. Não me lembro como era o banheiro da imensa casa, se é que havia. A família que comprou a fazenda construiu oito com privadas, bidês e boxes de blindex, trabalho supimpa. Um dos filhos do casal é arquiteto genial, formado em Direito, e hoje reforma apartamentos em Paris para brasileiros ricos.

Volto à tal construção das seis cozinhas para contar-lhes que cada uma das famílias caprichava nos doces, salgados, bolinhos, empadas, pães e biscoitos para consumo próprio. Contudo, quando havia visitas – e tive oportunidade de visitá- los duas vezes – as cinco famílias bombardeavam o visitante com os seus quitutes, em uma guerra para ver qual das mulheres sabia cozinhar melhor.

Em 1972, os cinco venderam a fazenda por US$ 120 mil. Era bom dinheiro, muito mais que os atuais R$ 276 mil, mas ainda assim uma importância que não deixava ninguém nadando em ouro. Cada família recebeu US$ 24 mil. Tenho uma referência para os US$ 120 mil em 1972: era o saldo médio da conta pessoal, no Banco do Brasil, de advogado amigo meu. O rapaz andava muito “bem de vida”, trocava de carro importado quatro vezes por mês, era rico pelos padrões de nossa turma. Ainda assim, não era dinheiro do outro mundo e foi o total recebido pelos cinco herdeiros quituteiros.

Em Minas, as heranças servem para destruir fazendas. Uma propriedade de 500 hectares dividida por 10 filhos resulta em diversas fazendinhas com área média de 50 hectares, de água e acesso problemáticos. Uma segunda fornada de herdeiros inviabiliza tudo, surgem casas modestíssimas das quais os irmãos, a distâncias razoáveis, se veem e se odeiam.

EDIÇÃO 787 – 07/69


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