As receitas que são reveladas durante o sono de uma cozinheira chegam a BH
Os salgados, cujas receitas são reveladas durante o sono da cozinheira mineira Alaíde Carneiro, fizeram fama na capital carioca; agora, passam a integrar o circuito gastronômico de BH
“Eu sonho não só com os ingredientes, mas com a montagem e o modo de preparo. Até com a finalização e com o nome do salgado eu sonho. Escrevo rápido e de olhos fechados, porque geralmente vem uma sombra e apaga tudo. Aí, quando acordo, leio o que escrevi no caderno e faço a receita”, diz ela, sem medo de entregar o jogo. Alaíde, vale dizer, não faz questão de medir as quantidades dos ingredientes. “São sempre receitas para muita gente, nunca sei de cor”, disse. Essas, digamos assim, “visões” já lhe garantiram nada menos que 54 receitas de seus famosos salgados.
Receitas essas que lhe renderam fama e prestígio na cena gastronômica do Rio de Janeiro, onde a cozinheira assumiu, em 1984, a cozinha do Bracarense, na época um dos botequins mais badalados do bairro Leblon, para anos depois se aventurar em um negócio próprio no não menos reconhecido Chico & Alaíde, também na zona Sul carioca. A boa nova é que, há cerca de dois meses, Alaíde e seus reconhecidos bolinhos estão dando o ar da graça no Planalto, bairro da zona Norte de Belo Horizonte. O pequeno bar, localizado na avenida Dr. Cristiano Guimarães, entre uma pastelaria e uma agência lotérica, ainda não tem placa nem nome oficializado, mas quem chega sempre faz a mesma pergunta. “É aqui que fica o botequim da Alaíde?”.
Sim, é. Com pouquíssimas mesas na calçada, o local registrou filas quilométricas em busca dos bolinhos, logo na primeira semana, após algumas visitas estratégicas, como a do jornalista Daniel Netto, do perfil no Instagram Baixa Gastronomia, que voluntariamente fez a divulgação.
Vizinhos asseguram que, naqueles dias, as filas ficaram maiores do que as que se formam na lotérica quando o prêmio da Mega-Sena fica acumulado. “Não estava esperando aquela quantidade de gente. Fiquei completamente maluca”, lembra, aos risos. “Eu já estou acostumada a filas, mas, no caso, tive que pedir desculpas aos que não consegui atender. E os mineiros foram muito compreensivos”, contou ela, que chegou de mansinho, sem falar com ninguém sobre o novo endereço. Mas não demorou muito para que o típico boca a boca mineiro engrenasse para dar continuidade à fama de Alaíde.
“Me contaram que a antiga lanchonete aqui, que era do Renato, agora é um bar com uns bolinhos incríveis, que eram famosos no Rio de Janeiro”, revelou o carioca Durval Serra, que mora há 15 anos no bairro Planalto e, mesmo tendo nascido e vivido durante anos na capital carioca, foi experimentar os quitutes só em Belo Horizonte. Mas, bem, ele precisou esperar um pouco: afinal, a estufa repleta de almôndegas, bifes suínos, linguiça e costelinha só cede espaço aos bolinhos por volta das 16h. Detalhe: eles custam de R$ 5 a R$ 8 a unidade e são todos fritos na hora. À medida que a estufa vai esvaziando, novas remessas são imersas no óleo quente.
Cumpre dizer que, das 54 receitas sonhadas e desenvolvidas por Alaíde, só cerca de 20 sabores ganharam espaço cativo em sua estufa, como o bolinho de caruru com vatapá, finalizado com um camarão seco por cima, os de feijoada, bacalhau e carne-seca com abóbora e o primeiro que ela criou, batizado com seu nome e feito com aipim, queijo cremoso e camarão. Na verdade, não há um cardápio fixo, e os bolinhos são fritos de acordo com a demanda de clientes. O boteco, que abre bem cedo – por volta das 8h –, também serve prato feito a partir de R$ 13, com opções como rabada com polenta, costelinha frita e peixe com molho de camarão.
História. Mineira de Pirapora, Alaíde chegou ao Rio em 1975 e foi trabalhar numa casa de família, onde aprendeu a fazer quitutes tão bem que logo passou a vendê-los por encomenda. Depois de sair do Bracarense, em 2009, abriu o Chico & Alaíde juntamente com um dos garçons do mesmo bar, Francisco, já que era um desejo ter sua própria cozinha. A parceria durou até fevereiro deste ano, quando a cozinheira desligou-se e, assim, pôde realizar um desejo antigo: ficar ao lado de sua família e morar em Belo Horizonte. “Eu só vinha aqui quando morria algum parente, sabe? Por isso, já estava planejando há muito tempo vir pra cá, era um desejo antigo. Não estava mais curtindo trabalhar lá, só pensava em BH”, contou ela, que, atualmente, também mora no mesmo bairro de seu bar.
O novo local foi um acaso. Alaíde descobriu com os vizinhos que o antigo dono do estabelecimento estava passando o ponto e foi logo arrumando um jeito de estrear ali seu novo endereço. É bem menor, menos badalado – no Rio, a presença de globais era constante. Ela planeja inclusive escrever, aqui, o livro que contará sua história – na verdade, guarda um arsenal de receitas exclusivamente para ele.
“O público aqui é diferente, mas para melhor. São honestos quando esqueço de marcar algum bolinho na comanda. E eu só recebo apoio, parabéns e pedidos pra ficar aqui no bairro”, ela contou, depois que a reportagem foi pausada, pela quarta vez, por uma cliente agradecendo-lhe pelos quitutes e desejando mais sucesso.
Val, o marido, é o único funcionário fixo do estabelecimento – e, curiosamente, já foi garçom do Bracarense. Três irmãs e os sobrinhos vão se alternando entre o bar e a casa, que, na verdade, é a fábrica dos bolinhos. Cada dia alguém da família integra o time de funcionários. “Eles me apoiaram demais quando eu disse que queria voltar. A família, unida jamais será vencida! E eu não abro mesmo mão deles”, disse, convicta.
Adaptação longe do mar
Agora em solo mineiro, uma questão importante era saber como garantir a qualidade dos frutos do mar, ingredientes frequentes nas receitas de Alaíde Carneiro – afinal, Belo Horizonte fica a quilômetros das praias. Mas ela conta que conseguiu um produtor que entrega toda semana os insumos, sempre fresquinhos. “Tudo o que eu tinha no Rio, tenho aqui também”, garante.
A surpresa da cozinheira foi a grande saída de seus consagrados bolinhos do mar. “Os que contêm camarão são os que mais têm saída, isso me surpreendeu bastante”, contou ela. Em terras cariocas, o mais aclamado é o choquinho: generosos camarões cobertos de Catupiry e em batata palha caseira. Segundo ela, já teve briga por lugar na fila, iniciada por quem surtou ao pensar que ficaria sem a iguaria.
A dificuldade mesmo foi se acostumar a chamar suas criações de bolinhos. “Eu chamava de ‘salgados’, mas já estou me acostumando (a falar ‘bolinho’)”, disse.
Boa de papo, Alaíde prefere não falar tanto do passado. Pelo menos, sobre o fim da parceria com Francisco Chagas, seu antigo sócio no bombado bar Chico & Alaíde, no Leblon. O imbróglio está na Justiça e ela prefere se resguardar. As partes boas, ela faz questão de deixar estampadas nas paredes do pequeno bar, repleto de recortes de reportagens da sua fama em publicações cariocas. E, definitivamente, não gosta de dar detalhes sobre suas criações – tampouco a receita. “O segredo é a pessoa ter amor pelo que faz. E, claro, usar ingredientes de qualidade e fritar o salgado em gordura sempre limpa, senão, fica encharcado”, entregou ela, que faz questão de não sair da cozinha. “Sou muito exigente. Se um bolinho não fica do meu jeito, eu mesma pego e faço”, afirma.
Em tempo: mesmo exibindo um sorriso mais cativante que sua estufa, a chef reluta em revelar sua idade. “Essa parte você pode pular. Sou igual à (jornalista) Glória Maria, não revelo quantos anos tenho. Quem sabe amanhã ou depois você volta e eu te conto?”, brinca.
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Barquinha recheada com camarão e queijo cremoso e enfeitada com azeitona empanada em flocos de arroz |
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A mineira Alaíde Carneiro e seus famosos salgados em BH. No novo bar, ela serve 20 dos 54 que criou
BOTEQUIM DA ALAÍDE
Avenida Dr. Cristiano Guimarães, 1.863, Planalto. (31) 2527-3386. Aberto de terça-feira a sábado, das 8h às 22h, e domingo, das 9h às 18h30
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FONTE: O Tempo.