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Os donos dos pobres e o Judiciário brasileiro

pobre

 

No atual modelo brasileiro, criamos um sistema de assistência jurídica e gratuita que atende mais aos prestadores do serviço do que aos supostos usuários. De “assistidos”, estes passaram a “substituídos”, meros coadjuvantes. O serviço de assistência jurídica caminha para o monopólio, o que o transforma em instrumento de controle, e não de emancipação. A assistência jurídica deve ter três pilares básicos: comprovar a carência econômica nos autos; atuar como representação processual; vários legitimados prestando a assistência jurídica, pois o monopólio impede a autonomia de escolha e vontade do carente.Os dados indicam que 30% da população está inscrita no Cadastro Único de Programas Sociais do governo, mas este público não está sendo beneficiado com a Justiça gratuita. Temos o paradoxo de haver dois tipos de pobres na área jurídica. Um sistema é restrito para concessão de gratuidade nos cartórios extrajudiciais, pois na prática não basta assinar declaração de pobreza. E temos outro tipo de pobre para fins judiciais, totalmente banalizado, e sem critério objetivo algum. Nem mesmo há uma pesquisa para identificar quem está sendo beneficiado. A prática indica que há desvios de finalidade grotescos.Discutir critérios para “Justiça gratuita” não interessa muito ao meio jurídico. Afinal, sem critérios objetivos, o que seria um direito torna-se uma espécie de favor. Pessoas não podem exigir o direito. E, além disso, podem-se ajuizar mais ações, o que aumenta o “mercado jurídico”. Por outro lado, alega-se de forma retórica que “pobre é aquele que não pode suportar os custos do processo”. Ora, mas na prática calcula-se o custo do processo ao seu final. 

Na maioria dos processos, as custas ficam abaixo de um salário mínimo (excluindo honorários); logo, muitos poderiam pagá-las. Noutro sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) impõe uma tabela de honorários com valores altíssimos. A tabela pode até ser referencial, mas obrigatória. O mais grave de tudo é que as despesas com médicos podem ser abatidas no Imposto de Renda, mas as despesas com advogados não. Além disso, a OAB impede que ONGs e cooperativas de advogados prestem assistência jurídica. 

Todas essas medidas são negadas no meio jurídico e nada se questiona – embora alegue-se que seja um serviço fundamental e essencial à Justiça. Ora, justamente por isso não se pode ter regras restritivas não previstas em lei, mas apenas em vedações meramente “administrativas”. Agrava-se pelo fato de a OAB vedar o uso de rádio e TV pela advocacia como direito de informação ao “presumir” má-fé de captação de clientela. Esta proibição já foi considerada inconstitucional nos Estados Unidos por violar o direito de informação. 

Em razão de regras restritivas, chegamos ao paradoxo de ter “excesso de advogados” e ao mesmo tempo “falta de assistência jurídica”. Isso ocorre pelo fato de termos dois tipos de advocacia no Brasil: uma aristocrática e palaciana, que comanda as entidades de classe e atende à elite brasileira com altos honorários, e uma popular, que luta pela sobrevivência e é malvista pelo outro grupo. 

Os advogados de pequenos escritórios, bem como os advogados empregados, não conseguem participar dos órgãos ligados à OAB em razão de ter que trabalhar e não ter “empregados”, além de o serviço na OAB não ser remunerado, pois é voluntário. Logo, há uma disputa fratricida e um conflito de interesses pouco discutido que prejudica a população. Criaram até mesmo a figura do advogado associado (nem sócio, nem empregado), algo sem lei, mas que reduz custo para escritórios maiores.

Nessa questão, setores que tentam atender os pobres, como municípios, ONGs e faculdades de direito, são pressionados e até processados para que haja um controle do mercado, por meio do monopólio da pobreza, para evitar a concorrência. E nada se fala. A discussão foca em uma disputa entre “advogados dativos “ e “Defensoria Pública”. O que se evita é que outros setores “concorram” nesse atendimento aos pobres, pois é “gratuito” apenas no nome. Afinal há uma verba estatal bilionária. 

Este modelo mantém os pobres mais pobres e enriquece os prestadores do serviço. Porém, a situação é muito mais ampla, pois não está havendo comprovação de carência. É como se não houvesse controle algum sobre o programa Bolsa-Família e este pudesse ser entregue a quem quisesse, a bel-prazer do “dono dos pobres”. Pequenos escritórios de advocacia estão sendo fechados e a OAB nada fala sobre isso. Ocorre que a OAB não vê com bons olhos esta “popularização” da advocacia em “escritórios” mais simples, pois acabam concorrendo com os grandes. Logo, a solução é deixar concorrerem com a Defensoria, o que fatalmente tem levado ao fechamento silencioso de vários escritórios. 

A única solução é unirem-se, mas é uma mudança difícil para quem se adaptou a trabalhar isoladamente. Na lógica da OAB, quem não puder pagar os honorários que fixamos, terá que procurar a Defensoria. Logo, este modelo estatal não atende o pobre, mas sim ao prestador de serviço e a algumas elites que não terão concorrência.

O Estado apenas deve prestar serviço em locais em que há falta de mão de obra ou do serviço. No caso da assistência jurídica, bastaria ao Estado estimular formas de atendimento pela iniciativa privada. Mas interesses corporativistas e de mercado impedem isso. Urge que se combata essa espécie de ditadura de “donos dos pobres” e que a assistência jurídica seja prestada de forma ampla, com comprovação da carência, por meio da representação processual (e não por substituição processual) com vários legitimados para que o pobre tenha autonomia de escolha, sob pena de deixar de ser cidadão e tornar-se objeto.

André Luis Alves de Melo – Promotor em Minas Gerais e
doutorando pela PUC-SP

FONTE: Estado de Minas.