Laudando et vituperando abstine: tutum silentium praemium.

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Comida-di-Buteco

O sucesso do Kaol, do Café Palhares: ‘O segredo está no molho’.

Careca: ‘meus clientes gostam mesmo é de comer’.

Joana: ‘é fazer com mais carinho’.

Tricampeão do Comida di Buteco, Bar do Zezé quer vencer o Botecar com seus petiscos

gastronomia
Pronto para a disputa – Os petiscos do Bar do Zezé serão destaque do Festival Botecar deste ano
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Único tricampeão do festival Comida di Buteco, o Bar do Zezé, no Barreiro de Baixo, fez história em Belo Horizonte com a especialidade da casa, os bolinhos de bacalhau com milho. Famoso por seus petiscos fartos, o cardápio do Zezé também inclui pratos como galinhada, tropeiro e tutu com linguiça e pernil.
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“Em 1980, abri uma mercearia. O negócio foi crescendo e resolvi abrir um bar ao lado, acabei fechando a mercearia. De lá para cá, o público mudou muito, mas tenho clientes desde quando inaugurei”, conta José Martins, o Zezé, que comanda a cozinha ao lado da esposa, Alfa Martins. “Todas as receitas são nossas, cada um dá um palpite, até encontrar o ponto certo da receita”, disse Alfa.
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Este ano, o bar do Zezé participa do festival “Botecar” com um prato tradicional da região do município de São Domingos do Prata, o bolinho de Cascais: bolinhos arroz com bacalhau acompanhados com creme de alho e ervas.

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Os irmãos João Lúcio Ferreira e Luiz Fernando, que assumiram há 40 anos o Café Palhares
Os irmãos João Lúcio Ferreira e Luiz Fernando, que assumiram há 40 anos o Café Palhares
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Carinhosamente conhecida como a capital dos bares, Belo Horizonte tem botecos de grande tradição. São mais de 18,5 mil estabelecimentos espalhados pela cidade, segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel-MG), que fazem a alegria de moradores e turistas.
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A gastronomia de boteco passou a ser ainda mais valorizada com a divulgação dos concursos “Comida di Buteco” e “Botecar”, que começaram neste mês em BH. Enquanto alguns bares apostam no conceito de botequim gourmet, outros antigos redutos da boemia tiveram clientela e cardápio repaginados com o passar dos anos.
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Aberto em 1983, o Café Palhares é um deles. Na rua Tupinambás, 638, no Centro (mesmo endereço desde a fundação), o bar, antes frequentado somente por homens, hoje recebe famílias inteiras para o almoço.
Kaol
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“Antigamente, as mulheres não entravam nos bares, só em restaurantes. Algumas até frequentavam, mas eram pouquíssimas. Antes era uma cafeteria que funcionava 24 horas, depois passamos a investir mais no almoço, na gastronomia. Isso fez com que o perfil do cliente mudasse um pouco”, conta um dos proprietários do café, Luiz Fernando Ferreira.
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Luiz e o irmão, João Lúcio Ferreira, assumiram o negócio há 40 anos, aberto pelo pai. O famoso kaol, carro-chefe da casa batizado pelo jornalista e compositor Rômulo Paes, era antes o prato preparado para os funcionários que trabalhavam no café. “Kaol quer dizer: cachaça (com k), arroz, ovo e linguiça. Naquela época, todos tomavam um aperitivo antes de almoçar”, lembrou Luiz.
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A receita clássica foi incrementada e ganhou a companhia da couve, do torresmo, do molho de tomate e da farofa de feijão. A linguiça pode ser substituída por língua ou dobradinha. “O segredo está no molho”, disse o proprietário do Café Palhares, que não revela seu ingrediente secreto.
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Serviço:
Café Palhares
Rua dos Tupinambás, 638, Centro.
Fone: (31) 3201-1841
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No Agosto Butiquim, pratos da cultura popular são tratados com carinho e ganham releituras
Gastronomia
Festival – Joana apresenta sua criação Sertões de Jacuí
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“Para mim, gourmet é aproveitar a referência de pratos de domínio popular, da culinária mineira, e fazer com mais carinho”, resume a chef Joana Machado, proprietária do Agosto Butiquim, no bairro Prado, região Oeste de Belo Horizonte..
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Joana é exemplo da nova geração de profissionais que estudaram gastronomia e continuaram dentro da tradição dos botecos. “Quem frequenta os bares da capital estão ávidos por coisas novas. Apresentar o tradicional de forma mais cuidadosa, essa é a cozinha gourmet”, disse a chef que estudou gastronomia em Balneário Camboriú, em Santa Catarina, em uma época que BH não tinha tantas opções de curso superior na área.
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Este é o terceiro ano que o bar participa do festival “Botecar”. O prato elaborado para o evento é o Sertões de Jacuí: pernil assado e refogado em mistura mineira, flambado na cachaça com cravo e casca de laranja acompanhado de batatas rústicas. “É uma homenagem à cidade da minha família”, contou Joana.
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No Bar do Careca, comida é principal atrativo: ‘Meus clientes gostam mesmo é de comer’

Gastronomia
O Careca – Orcínio Ferreira não vai participar dos festivais de boteco deste ano
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O simpático Orcínio Gonçalves Ferreira, mais conhecido como Careca, comanda o bar que leva seu apelido há quase 30 anos. É ele próprio quem tempera, corta e cozinha os pedidos. O bar do Careca foi o primeiro vencedor do concurso “Comida di Buteco”, com a famosa língua refogada.
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“Gosto muitos dos festivais de gastronomia, do movimento que eles trazem. Hoje, já são mais de cem botecos participando dos dois concursos. Isso é ótimo para Belo Horizonte, mas neste ano fiquei de fora, já cheguei a uma certa idade, ando um pouco cansado”, diz Careca, bem humorado.
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Segundo ele, a hora do almoço é a mais movimentada e atrativa do bar. “Aqui, recebo muitas famílias, jovens acompanhados dos pais, dificilmente vejo pessoas que vêm só para beber. Meus clientes gostam mesmo é de comer”, contou Careca.
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‘Nos tempos de barraquinha’ é uma homenagem à Festa de São Geraldo

Os quitutes das barraquinhas das festas de Curvelo inspiraram Túlio
Os quitutes das barraquinhas das festas de Curvelo inspiraram Túlio

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Foi em homenagem à festa de São Geraldo, que acontece anualmente em Curvelo, na região Central de Minas Gerais, e onde Túlio Montenegro passou a infância e boa parte da adolescência, que o chef criou o prato “Nos tempos de Barraquinha”, que está no cardápio do festival Botecar de 2015, evento que neste ano vai movimentar 55 bares diferentes da capital.
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“Eu me lembro muito bem das festas de São Geraldo de Curvelo, onde nos deliciávamos com os quitutes das barraquinhas. Recordo-me de uma específica, em que um senhor construiu um fogão a lenha e com uma única panela ele servia churrasquinhos cozidos envoltos em um molho diferente, servido com farofa”, conta.
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Foi nesse momento de sua vida que o Chef Túlio buscou inspiração para criar uma receita de espetinhos de boi, frango e porco banhados em um molho picante de tomate, servido com dois tipos de farofa (uma de beterraba e outra de espinafre), torradinhas ou anéis de cebola, e um complemento de churrasquinho de abacaxi ou banana. “A Maria do Carmo aprovou, e quando ela aprova, eu sirvo”, brinca o chef, que contou ainda que usa a esposa como termômetro para montar o cardápio.
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Curiosidade: o brinco
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Conhecido pelo “chef que usa um brinquinho”, a fama se tornou marca do estabelecimento. Uma argola com um garfo, uma faca e uma colher pendurados estão por toda parte no bar. Seja em esculturas, desenhado na parede ou em produtos como seus exclusivos molhos de pimenta.
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A moda foi lançada por Túlio, “bem antes da Débora Falabella”. “Minha esposa achou um par desses brincos no chão, em Charlottesville, na Virgínia, quando ainda morávamos nos Estados Unidos. Nunca mais eu tirei”, conta, sorrindo.
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Harmonização
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Para harmonizar “Nos tempos de barraquinha”, o chef recomenda uma produção da própria família: o chope artesanal Santa Tulipa. Fabricação que leva o nome de seu filho Thiago Montenegro.
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Do tipo Pale Ale, chope puro malte, coloração dourada, cristalino e brilhante. Tem sabor pronunciado de malte, aromas frutados e médio amargor. Apresenta creme denso e consistente.
Delícia - O prato traz carnes de boi, porco e frango

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FONTE: Hoje Em Dia.


Saiba como foram criadas as receitas mais típicas de Belo Horizonte e como sua história se relaciona com a da cidade
Pratos típicos

GastronomiaUm feijão-tropeiro modificado por truques de uma cozinheira de pensão. Um caldo de mocotó que faz flanelinhas e desembargadores dividirem o mesmo balcão. Uma refeição como outras tantas na cidade e que virou a matadora de fome oficial da madrugada. A comida de funcionário que ganhou apelido e virou o prato feito mais famoso da cidade. A improvável mistura de fígado de boi e jiló que não era para ser mais do que um petisco de feirantes. Eis as cinco receitas mais típicas de Belo Horizonte, que, despretensiosamente, ajudam a contar a história da capital mineira e a formar sua identidade cultural.

“Minha tia Lola tinha uma pensão onde ela mesma cozinhava. Quando foi convidada para ter um bar no Mineirão, no fim dos anos 1960, ela incrementou o tropeiro com o molho de tomate e o ovo frito inteiro, em vez de mexido. As pessoas pediam assim na pensão, como complemento da carne”, lembra Eliane Assis, que foi permissionária de bares (o de número 13 tornou-se o mais famoso) que serviram o prato no estádio até a reforma de 2010. Prevendo as mudanças que vieram em seguida, ela abriu o restaurante Tropeiro do 13 em 2005, no Bairro Planalto. Tudo para não deixar morrer a tradição, o que inclui o molho de tomate.

Tropeirão

Afinal, por que colocá-lo sobre o tropeiro, já que é um ingrediente sem qualquer relação com esse prato clássico mineiro? “Esse molho minha tia já fazia na pensão e era bem aceito. Como não havia como refogar couve para milhares de tropeiros no mesmo dia, ela punha o molho por cima da verdura crua para melhorar o sabor da couve”, revela Eliane. E com um detalhe: a chapa funcionava apenas para fritar os bifes de lombo, e Lola a raspava o tempo inteiro, acrescentando essas crostas saborosas ao molho. “O sabor era apurado ao longo do dia”, completa ela. Com a transferência para o Planalto essa técnica se perdeu. Quem comeu, comeu.

 Bolão se afastou do comando da cozinha e lamenta mudanças na receita de seu espaguete, que é parte do Rochedão, refeição que pesa 800g (ALEXANDRE GUZANSHE/em/d.a press)

Bolão se afastou do comando da cozinha e lamenta mudanças na receita de seu espaguete, que é parte do Rochedão, refeição que pesa 800g

LATINHA “Lá no Mineirão tinha alegria, contato com o torcedor. Quando o time virava o jogo, mudava o astral, mudava tudo. Era uma coisa doida, uma magia”, lembra Eliane, que ficava no caixa, enquanto a mãe, Vina, comandava a cozinha. Essa mágica tinha a ver também com o volume de trabalho: chegar às 5h para começar a vender tropeiro às 10h era comum. O recorde foi de 4,3 mil pratos servidos no mesmo dia, ocasião em que havia cerca de 90 mil torcedores no estádio. Mesmo com a considerável diminuição de fregueses, uma coisa não mudou: ainda vale como medida da farinha de mandioca a amassada e arranhada lata de castanha de caju dos anos 1970.

A sequência de preparo é: gordura de porco na panela, alho batido com sal, linguiça calabresa, torresmo sem pele frito, feijão carioquinha cozido (com um pouco do próprio caldo), deixa ferver, apaga o fogo, mistura a farinha, põe a cebola crua cortada fininha e a cebolinha e mexe tudo. “Mas com jeitinho, com o garfo, senão vira tutu”, ensina ela. E arremata: “Nosso tropeiro é mais molhado, vai com um pouco mais de caldo. Não que aquele mais seco seja ruim, mas aqui não vende, pois o pessoal gosta dele mais molhado”.

Você pode, querendo, experimentar a receita do blog AQUI!

CANECA DE MOCOTÓ  “A receita é a mesma, não mudamos praticamente nada”, garante Dênio Corrêa, o caçula dos cinco irmãos que se revezam há anos no preparo do caldo mais popular da cidade, o de mocotó do Nonô, com 51 anos de existência. Ele começou a ser servido no Barreiro, na época em que a instalação da siderúrgica Mannesmann ajudou a desenvolver a região. Era só uma barraquinha, mas a grande aceitação entre os operários encorajou Raimundo de Assis Corrêa, o Nonô, a abrir um bar ali perto, no Clube Colina, e, depois, no Centro, onde funciona até hoje.

É das poucas casas da cidade que funcionam 24 horas: abre segunda, às 6h, e só fecha sábado, à 0h. Três turmas de funcionários passam pela casa ao longo do dia. O caldo é feito até quatro vezes por dia, de acordo com a demanda. Faça frio ou calor, sempre há fregueses encostados no balcão para tomá-lo. “Está meio quente, então estamos usando 1,2 tonelada de mocotó para esta semana. Quando esfria, vendemos uns 60% a mais”, conta Corrêa. A cerveja preta Caracu é o acompanhamento tradicional, sendo que o bar é o maior vendedor da marca no país – são cerca de 5 mil latas por mês.

Sobre o caldo, é importante dizer que mocotó não é simplesmente mocotó. Na cozinha do local, esse corte bovino é separado de acordo com três categorias: unha, canela e panturrilha. Cada caneca leva um pouco de cada (esses pedacinhos são chamados de “barranco”) e cebolinha picada por cima. “Se a gente cozinhasse tudo direto, o gosto ficaria muito forte. Por isso fritamos o mocotó antes, o que elimina parte da própria gordura. O pessoal da roça não come assim, mas o da cidade não tem estômago para isso”, explica ele. A versão completa ainda leva dois ovos de codorna crus, que cozinham no calor do caldo.

TÁXI Refeições fartas, com arroz, feijão, batata frita, ovo, bife e macarrão existem aos montes pela cidade. Por que, então, a versão do Bolão, em Santa Tereza, tornou-se tão famosa? “Os taxistas foram os primeiros a comer isso e pode saber que lugar em que vai muito taxista é bom. Eles é que foram fazendo o boca a boca. Ficou famoso por causa disso e por funcionar de madrugada, apesar de hoje a casa fechar mais cedo. A gente acompanhava o funcionamento do cinema, que ficava do outro lado da praça, e fomos esticando o horário”, conta o fundador da casa, José Maria Rocha, o Bolão.

Ele é criador do Rochedão, servido desde o início dos anos 1980. Tudo começou com o espaguete. “Aqui no bairro tinha um bar que servia espaguete e, quando fechou, os fregueses pediram para que eu fizesse. Já era servido assim, com o molho separado da massa”, lembra. Com o crescimento da casa, o cardápio passou a ter, além de petiscos, refeição, que sempre chegou à mesa com a massa à parte. As batatas fritas (nunca das congeladas) foram o último item a ser acrescentado a um prato que totaliza cerca de 800g.

Atualmente afastado da direção do bar por problemas de saúde, Bolão se queixa das mudanças que a receita do espaguete sofreu com o tempo. O principal problema, diz, foi a troca da massa com ovos pela de grano duro: “Gosto dela mais macia, e hoje ela é mais firme. Além disso, o molho não gruda nela direito”. Também lamenta que o molho não seja mais feito da forma como o concebeu: sem tomate fresco (só o extrato enlatado), com “tempero normal” (alho batido com sal) e acém moído. Mesmo assim, ele ainda gosta de ficar sentado na porta do restaurante cumprimentando clientes praticamente sem parar.

Operário-padrão
Pratos improvisados para atender os funcionários do café palhares (Kaol) e feirantes do Mercado central (Fígado com Jiló) acabaram se tornando clássicos da cidade
O boteco Valadarense, no Mercado Central, que serve fígado com jiló há mais de 40 anos. Receita surgiu para atender trabalhadores do local (Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
O boteco Valadarense, no Mercado Central, que serve fígado com jiló há mais de 40 anos. Receita surgiu para atender trabalhadores do local

Nenhum dos pratos tipicamente belo-horizontinos é resultado de uma ação premeditada ou uma grande ideia que de repente foi colocada em prática na cozinha. Nesse sentido, chamam a atenção as origens de dois deles, o Kaol, do Café Palhares, e o fígado de boi com jiló do Mercado Central. Definitivamente, não era para se tornarem as duas mais emblemáticas receitas da cidade, mas quis o destino (e a freguesia) que fosse assim. A primeira surgiu como comida de funcionários; a segunda, um petisco improvisado de feirantes.

“Nos anos 1960 e 1970, o mercado era o principal centro abastecedor da cidade, com um abatedouro em funcionamento. Abria cedo e não havia restaurantes no entorno. Os feirantes pegavam os miúdos e levavam para os bares”, conta José Agostinho Oliveira Quadros, presidente do Mercado Central e comerciante por lá há 50 anos. O jiló, diz ele, provavelmente entrou no petisco por ser dos ingredientes mais baratos na época. Assim, tornou-se o tira-gosto mais famoso da capital mineira, servido por praticamente todos os bares do local.

Já Ronaldo Marques, gerente do bar Fortaleza, um dos vários balcões onde se pode comer essa combinação de sucesso, conta versão um pouco diferente. “A história que sei é que dois açougueiros do mercado chegaram num dos bares com jiló e pediram para prepará-la com carne de porco. O fígado foi sacada do dono do bar, com certeza, por ser mais barato que a carne de porco. Era um prato de açougueiro para açougueiro”, relata ele, que já vendeu de quase tudo no local e há 15 anos comanda a chapa em que é preparado o petisco.

KAOL O fato de ter sido batizado pelo jornalista e compositor Rômulo Paes confere pompa ao Kaol, o prato feito que ajudou a construir a fama do Café Palhares, inaugurado em 1938, no Centro. Entretanto, originalmente, ele era a comida dos empregados que trabalhavam no bar à noite, na década de 1950. “De madrugada, eles faziam um prato com arroz, ovo e linguiça. Como o bar era pequeno, comiam por perto e todo mundo via. Os fregueses começaram a querer também e foi assim que começou”, conta João Lúcio Ferreira, um dos proprietários.

Funcionário do Palhares prepara o Kaol, que inclui arroz, farofa de feijão, couve, ovo, linguiça, torresmo e molho (Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Funcionário do Palhares prepara o Kaol, que inclui arroz, farofa de feijão, couve, ovo, linguiça, torresmo e molho

Inicialmente, o prato era servido só à noite. Na década seguinte, passou a ser oferecido também no almoço. “Nessa época, era servido num prato de papelão e o pessoal sentava no meio-fio para comer. Aqui só foi ter lugar para sentar depois da reforma, nos anos 1970”, lembra ele. O público boêmio aprovou a receita, frequentemente pedindo cachaça para acompanhar. Por motivo que segue desconhecido por Ferreira, o “c” virou “k” na hora de usar as iniciais dos ingredientes para batizar o prato. Ele aproveita para esclarecer que, na verdade, esse apelido foi criado com a participação de seu pai, João.Hoje, são nada menos que 400 pratos servidos por dia. Com o tempo, outras guarnições pedidas por fregueses foram adicionadas definitivamente ao prato, como couve, farofa de feijão, torresmo e molho de tomate. O molho da casa não leva tomate fresco, mas extrato enlatado, e ajuda a deixar o prato menos seco, a exemplo do que é feito também em outro clássico da cidade, o feijão-tropeiro do Tropeiro do 13.

“A gente colocava um tomate por cima do prato e depois resolveu trocar por esse molho. Na época, servíamos muito sanduíche de pernil e de linguiça, sempre com esse mesmo molho. Já o tínhamos pronto na casa. Muita gente disse que não tinha nada a ver, mas que tinha ficado gostoso”, resume Ferreira. O orgulho maior da casa é a linguiça, produzida diariamente na sobreloja, desde a década de 1970, e que faz com que um certo freguês pague a conta, dê uma volta no quarteirão e volte para sentar-se na outra ponta do balcão para comer um segundo Kaol, tentando não se passar por guloso diante dos garçons.

FONTE: Estado de Minas.


Sagrado e profano

Orações, brigas, sexo, silêncio, jogos, tradição, imigrantes. Mais de 1 milhão de pessoas dão vida ao Centro de Belo Horizonte todos os dias

Museu de Artes e Ofícios deixa a Praça da Estação mais bela (Alexandre Guzanshe)
Museu de Artes e Ofícios deixa a Praça da Estação mais bela
A imersão continua. O cair da tarde traz uma enxurrada de automóveis à Avenida dos Andradas. Pelas calçadas, um povo apressado corre depois do almoço. Moradores de rua e catador de papel fazem a sesta sob o Viaduto Santa Tereza. Na Rua Carijós, escada acima, sete sujeitos entre 40 e 70 anos, ocupam o salão de bilhar. Ali, sinuca é assunto de profissional. O especialista em manutenção das mesas, conhecido como Dudu, cita caso de desafio que teve notícia. “A aposta durou quatro dias entre os dois bambas. O perdedor ficou devendo R$ 85 mil. Não tinha dinheiro, então, perdeu um apartamento no Bairro Castelo”, conta.
caos
Ainda é hora de almoço no Café Palhares, na Rua Tupinambás. Ponto histórico, aberto em 1938. É onde, por R$ 12,90, come-se o kaol, prato feito mais famoso de Belo Horizonte. Loja pequena, com 22 bancos. Comida de primeira e atendimento sem igual, que justificam a fila na calçada e o trâmite para patrimônio imaterial da receita. O senhor do caixa distribui simpatia à clientela, enquanto atendentes e a cozinheira não deixam ninguém com fome. Ana, então, de Curitiba, encantadora que só ela, é destaque no balcão.

mercado centralMercado Central

Na Rua dos Caetés, o prédio do Sesc, o Centro Cultural JK, reluz em contraste com tudo o que é degradação no perímetro. Na Rua Rio de Janeiro, os damistas passam o tempo levado a sério sob a marquise do belo Edifício Bemge – antigo Banco Mineiro da Produção –, projetado por Niemeyer, nos idos de 1950. O índio Taruande, de 23, da aldeia pataxó Coroa Vermelha, no extremo sul da Bahia, vende o artesanato feito pela família. Break, a estátua viva faz graça pelos trocados no chapéu. O evangélico prega; a pipoqueira sorri simpatia; a mocinha flerta o guarda e o palhaço sopra bolas de sabão.

Prazer fugaz

Segundo a Polícia Militar, são cerca de 1 milhão de pessoas, por dia, no Hipercentro. Um quarteirão acima da Praça Sete, a Capela Nossa Senhora do Rosário é um mimo. É a igreja mais antiga de Belo Horizonte, datada de 1897. No pequeno jardim de entrada, a flor-de-lis na parede faz ainda mais bonito o canteiro de ixórias. No velário, a moça em silêncio de oração parece pedir graça pelo fim das lágrimas que ela não dá conta de esconder. Nas escadas, o casal não se entende e o “Cala a boca!” do homem rompe o silêncio das preces.
Os pontos de ônibus lotados, transferidos da Avenida Santos Dumont para a Rua Guaicurus, não espantaram os fregueses dos hotéis de prostituição. Em becos e corredores, as portas fechadas e toalhinhas com nomes bordados guardam indecências. Ao trato de R$ 20, R$ 25 ou R$ 30, o prazer fugaz. Vê-se de tudo entre os frequentadores do lugar: meninos que dizem ter 18 anos; jovens vestidos com roupas “de marca”, grosseiramente falsificadas; homens de gravata; sujeitos fedidos; sapatos caros e velhos de bengala. Na vizinhança, tem também cabines com filmes pornô e striptease ao vivo.
É grande a mudança de clima, atmosfera e intenções de um quarteirão para o outro. Na Rua da Bahia, pouco acima da Praça Rui Barbosa, baile beneficente atrai os mais velhos. Os casais da melhor da idade tomam conta do salão ao som de Lei Gomes e Hélio. É o Bailinho da Tia Naná, sucesso há 33 anos em Belo Horizonte. Há três semanas no endereço, o encontro promovido por Maria Godoy Marcondes, a Tia Naná, de 86, já é assunto na região. Alegria para Maria Regina, de 60, uma das organizadoras e filha de Tia Naná, devota de Nossa Senhora Aparecida.

No salão vermelho e branco, homens e mulheres elegantes roubam os holofotes junto à banda de dois homens. O clima é de amizade e namoro embalados pelo melhor do bolero, do arrocha e do forró pé de serra. Nas mesas, muita água mineral, refrigerante e duas garrafas de cerveja. Vestidos florais deixam à mostra os joelhos da dançarina mais serelepe. Fora o bailinho das quintas-feiras, Tia Naná promove também excursões a cada dois meses. A próxima, em 10 de novembro, é o “passeio na roça”, em Rio Acima, na fazenda Engenho D’água.

Gatos, ratos e borboletas

São muitos os programas de calçada para quem quer esticar a quinta-feira. Não muito longe dos mais velhos, a moçada gosta mesmo é de paquerar. Em ponto de encontro na porta do Shopping Cidade a mocinha espera compromisso. Pelo celular, charmosa, dá a pista: “Tô de camisa vermelha…”. Pouco abaixo, próximo aos hippies com seus cigarrinhos suspeitos, Trio Harmony Vox arrebata a plateia nas mesas sob o céu estrelado. Afinadíssimos, os rapazes dão show com o melhor da disco music dos anos 1970 e 1980 e embalam os enamorados que se chamegam, como os gatos do Parque Municipal.

café bahia

café palhares

Já no Café Bahia, a moça tatuada, solitária, é quem chama mais a atenção. Linda, não passa despercebida pelos rapazes de bom gosto no espeto dos petiscos. O ponto é antigo, tradição na Região Central. Desde 1937. Ali, garçom é o “passarinho” Edson Roberto Pio, de 56, que assovia que nem ave cantadeira. O moço “bico doce”, destaque há 25 anos no estabelecimento, repete no beiço com perfeição os sopros de bem-te-vi, canário-belga, curió, sabiá, trinca-ferro, canário-da-terra, pintinho e gavião.

cidadeShopping Cidade

mercado das borboletas

De volta à Avenida Olegário Maciel no azul escuro da hora. Comércio fechado, pouca gente na via, é o terceiro piso do Mercado Novo a sensação do traçado. Proposta autoral de peça de teatro divide o espaço alternativo do Mercado das Borboletas com o charme do grupo de maracatu Baque de Mina. O lugar é uma incubadora, celeiro de bons artistas. Com o avanço da noite, a Kombi feita lanchonete nas cores do reggae é ponto de passagem para arte erótica que esquenta o início da madrugada. No que segue, no rasteiro do mais abaixo do Hipercentro, são dos ratos muitos dos segredos da escuridão.

FONTE: Estado de Minas.