Sagrado e profano
Orações, brigas, sexo, silêncio, jogos, tradição, imigrantes. Mais de 1 milhão de pessoas dão vida ao Centro de Belo Horizonte todos os dias
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Museu de Artes e Ofícios deixa a Praça da Estação mais bela |
Na Rua dos Caetés, o prédio do Sesc, o Centro Cultural JK, reluz em contraste com tudo o que é degradação no perímetro. Na Rua Rio de Janeiro, os damistas passam o tempo levado a sério sob a marquise do belo Edifício Bemge – antigo Banco Mineiro da Produção –, projetado por Niemeyer, nos idos de 1950. O índio Taruande, de 23, da aldeia pataxó Coroa Vermelha, no extremo sul da Bahia, vende o artesanato feito pela família. Break, a estátua viva faz graça pelos trocados no chapéu. O evangélico prega; a pipoqueira sorri simpatia; a mocinha flerta o guarda e o palhaço sopra bolas de sabão.
Prazer fugaz
Segundo a Polícia Militar, são cerca de 1 milhão de pessoas, por dia, no Hipercentro. Um quarteirão acima da Praça Sete, a Capela Nossa Senhora do Rosário é um mimo. É a igreja mais antiga de Belo Horizonte, datada de 1897. No pequeno jardim de entrada, a flor-de-lis na parede faz ainda mais bonito o canteiro de ixórias. No velário, a moça em silêncio de oração parece pedir graça pelo fim das lágrimas que ela não dá conta de esconder. Nas escadas, o casal não se entende e o “Cala a boca!” do homem rompe o silêncio das preces.
Os pontos de ônibus lotados, transferidos da Avenida Santos Dumont para a Rua Guaicurus, não espantaram os fregueses dos hotéis de prostituição. Em becos e corredores, as portas fechadas e toalhinhas com nomes bordados guardam indecências. Ao trato de R$ 20, R$ 25 ou R$ 30, o prazer fugaz. Vê-se de tudo entre os frequentadores do lugar: meninos que dizem ter 18 anos; jovens vestidos com roupas “de marca”, grosseiramente falsificadas; homens de gravata; sujeitos fedidos; sapatos caros e velhos de bengala. Na vizinhança, tem também cabines com filmes pornô e striptease ao vivo.
É grande a mudança de clima, atmosfera e intenções de um quarteirão para o outro. Na Rua da Bahia, pouco acima da Praça Rui Barbosa, baile beneficente atrai os mais velhos. Os casais da melhor da idade tomam conta do salão ao som de Lei Gomes e Hélio. É o Bailinho da Tia Naná, sucesso há 33 anos em Belo Horizonte. Há três semanas no endereço, o encontro promovido por Maria Godoy Marcondes, a Tia Naná, de 86, já é assunto na região. Alegria para Maria Regina, de 60, uma das organizadoras e filha de Tia Naná, devota de Nossa Senhora Aparecida.
No salão vermelho e branco, homens e mulheres elegantes roubam os holofotes junto à banda de dois homens. O clima é de amizade e namoro embalados pelo melhor do bolero, do arrocha e do forró pé de serra. Nas mesas, muita água mineral, refrigerante e duas garrafas de cerveja. Vestidos florais deixam à mostra os joelhos da dançarina mais serelepe. Fora o bailinho das quintas-feiras, Tia Naná promove também excursões a cada dois meses. A próxima, em 10 de novembro, é o “passeio na roça”, em Rio Acima, na fazenda Engenho D’água.
Gatos, ratos e borboletas
São muitos os programas de calçada para quem quer esticar a quinta-feira. Não muito longe dos mais velhos, a moçada gosta mesmo é de paquerar. Em ponto de encontro na porta do Shopping Cidade a mocinha espera compromisso. Pelo celular, charmosa, dá a pista: “Tô de camisa vermelha…”. Pouco abaixo, próximo aos hippies com seus cigarrinhos suspeitos, Trio Harmony Vox arrebata a plateia nas mesas sob o céu estrelado. Afinadíssimos, os rapazes dão show com o melhor da disco music dos anos 1970 e 1980 e embalam os enamorados que se chamegam, como os gatos do Parque Municipal.
Já no Café Bahia, a moça tatuada, solitária, é quem chama mais a atenção. Linda, não passa despercebida pelos rapazes de bom gosto no espeto dos petiscos. O ponto é antigo, tradição na Região Central. Desde 1937. Ali, garçom é o “passarinho” Edson Roberto Pio, de 56, que assovia que nem ave cantadeira. O moço “bico doce”, destaque há 25 anos no estabelecimento, repete no beiço com perfeição os sopros de bem-te-vi, canário-belga, curió, sabiá, trinca-ferro, canário-da-terra, pintinho e gavião.
De volta à Avenida Olegário Maciel no azul escuro da hora. Comércio fechado, pouca gente na via, é o terceiro piso do Mercado Novo a sensação do traçado. Proposta autoral de peça de teatro divide o espaço alternativo do Mercado das Borboletas com o charme do grupo de maracatu Baque de Mina. O lugar é uma incubadora, celeiro de bons artistas. Com o avanço da noite, a Kombi feita lanchonete nas cores do reggae é ponto de passagem para arte erótica que esquenta o início da madrugada. No que segue, no rasteiro do mais abaixo do Hipercentro, são dos ratos muitos dos segredos da escuridão.
FONTE: Estado de Minas.